sábado, 5 de julho de 2008

Sempre jogo o papel da bala no lixo.
Fico angustiado.
Papel é papel.
Bala é bala.
Bala é doce.
Bala se come.
Papel não se come.
Mas guarda, da bala, o nome.
Bala sem papel é só bala.
Mas bala com papel, fala.
Bala sem papel é bala.
Mas é anônima.
É doce, é dura, é mole.
Sem nome, sem nome.
Sem papel, nome não tem.
E por que o papel vai pro lixo?
O que se faz com o que não se come, mas tem nome?
E por que eu jogo o nome da bala no lixo?
Por que não guardo o papel e jogo a bala?
Anônima, ela se derrete.
É chupada, dissolvida.
No final, sempre mordida.
Afinal, sempre engolida.
Mas não tem nome.
O nome foi pro lixo.
A questão vai, porém, ao nome que se tem.
Quando se fala do papel, a questão vai mais além.
O nome da bala.
O nome da bala é o nome da bala.
E ela no papel está.
O nome que está no papel não é do papel.
O papel tem nome, mas não é dele.
O nome que está no papel é da bala.
E qual é o nome do papel?
E no mundo, então, qual o seu papel?
O papel não tem nome.
Ele é o nome.
Nome da bala.
Não tem nome, o papel.
Papel é papel.
E papel vai pro lixo.
Porque eu o jogo no lixo.
Nem pro lixo vai.
Vai pro chão.
O nome da bala entope os canos.
Entope as valas.
Entope os bueiros.
Entope o que a bala não entupiria.
Não entupiria porque se acabaria antes de entupir.
Morreria indigente.
Papel quando entope, é papel.
Achado.
Com nome.
Sem nome.
Bala quando se engole, é bala.
Perdida.
Nome achado.
Sem vida.

A cor ilegal

Certa vez, fui sorrateiramente perguntado, como numa noite simples de outono, se sabia o que é cor ilegal.
Nem a pergunta era tão simples. Nem a noite era de outono.
Um verão minguante na verdade. Águas de março. Sem promessas de vida. Nem sutis tons de saudade.
Parecia que se tratava de algo desconhecido por muitos. Até pelos próprios artistas plásticos. Por assim ser, num depois a esqueci. Ou melhor, a guardei em espaço desaparecido. Ilegal não é tão moral, não é? Um moço tão sereno, se preocupar com a ilegalidade?
Toquei a vida. As vidas. Duas. De tatos suavizados. Fui tocado por elas. Pelo amor de instalação em via pública de mão dupla. Por algumas letras impressas num mar branco. Pela edição pacata de cenas de presente sem passado. Que, de tão macia pele, se fez película.
Mas a cor não é decoração. Movida sem ser ação de cor.
É ilegal.
Roubo, aparentemente covarde, noturno, à mão armada, de um transeunte apressado e só, num beco vazio, às luzes artificiais que oscilam entre as lâmpadas que reluzem e as que, por estarem queimadas, não reluzem mais.
É ilegal. E é cor. Entre tantas cores, as mesmas lâmpadas, ainda acesas, emitiram suas luzes para que todas fossem cor. Sua própria cor.
Mas todas as cores surgiram enquanto, no verão, era noite. E as cores, assim como as luzes oscilantes que as formavam, eram artificiais? Complexo saber.
Faltava o apanhado de todas as cores quando chegasse a manhã. A luz do sol. Natural. Todas as cores compondo suas próprias cores. E, no meio delas, a cor ilegal.
Com a manhã e o sol veio a necessidade de vasculhar o lugar desaparecido. Quando o achei, lá estava ela. Com a sua gradativa ilegalidade.
Eis que surge, enfim, a cor ilegal. Não pelos livros e suas linhas de raciocínios que tentam ser lógicos. Não pelas bocas que vomitam sua teoria. Não pelas aquarelas, nem pelas cenas, nem pelas fotos.
Reluziu a mim. Inerte. Fria cor entre as cores quentes. Quente por ser ilegal. Fria por ser cor. Apanhei-a, mesmo assim, para juntá-la à minha aquarela. Passei, então, a pintar um novo quadro. Híbrida cromática com a sua presença.
A nova forma ficou amorfa. Deforme. Traços sem direção, sem sentido, com cores todas. E com a cor ilegal.
Num piscar de olhos - de quase mesmas cores -, havia uma nova composição. Nada era mais roubado. Nada era mais noite. Nem luzes oscilantes. Surpreendentemente, em pleno dia, os pontos de luz, com lâmpadas, antes, queimadas, acenderam. Talvez, por terem sido trocadas enquanto a cor ilegal era contemplada, clarearam seu entorno tão ofuscadas pelo sol que passaram despercebidas.
Com o tempo, já com o desenrolar do outono, pude amadurecer os efeitos dessa nova proposta à arte de viver. Não por completo. Porém dando espaço à existência de novas cores às duas vidas.
Sensações diferentes, a partir dos olhos, fizeram-me reparar que a ilegalidade da cor não é somente da cor. A cor pode ser cor sozinha. A ilegalidade não. Porque, para ser ela mesma, precisa da legalidade da coisa que ela parasita.
A noite, o dia e a pergunta sorrateiras... elas sim: ilegais. A cor, que está em ambos os olhos, na noite, no dia e na pergunta... esta: cor.
Para ela que olho agora. Olho neste quase inverno. A cor. Com a vermelhidão do sol que outrora ardia ainda na pele, agora um pouco mais bronzeada. Ela. Sorridente com a ilegalidade que ora vem valsar em sua inocência diurna e ora vem escondê-la por seu medo das trevas.
Para ela que olho. Já a sentir que ilegal, na verdade, depois da chuva, fica cada vez mais o meu próprio ser. A procurar as luzes da noite a fim de encontrá-la pacata e de outono, mesmo sabendo que, depois do dia e do verão, a cor e sua ilegalidade jamais voltarão ao seu estado anterior.
Mas qual será o seu novo estado?
Será uma nova cor ou uma nova ilegalidade? Será a mesma cor com ilegalidades múltiplas? Será a mesma ilegalidade com novas cores? Ou será uma simples cor, legal como tantas outras?
Não sei.
Eu, um pouco mais outono com pingos de inverno. Outros tempos mais primavera com pingos de verão. Eu, amante platônico do sol, mas com um protetor aos seus raios.
Eu, talvez somente cor, mas querendo tanto entender sua ilegalidade, mesmo que a repulse.
Eu. Brisa. Meios-raios.
Eu, noite ainda dia. Aparecer de lua sob os últimos suspiros de sol.
Eu?
Mate, mas com leite.

volvida

cheirei palavras
materializadas
pelo bater de olhos
sobre as coisas
no caminho
moinho
de volta

entre bolinhas pretas
de assoalho
e rebite
de chapa de alumínio,
gases carbônicos
de desconhecimento

a métrica é não
ter

tri
ca
o
flu
xo
é
o
desfluxo do alento

sono meu se perde
multidão
de reflexos
amorfos
reflexões
subterrâneas
luzes
subalternas

sobrealternadas

livros
parados
nas estantes
sem leitura

mas tem face
e
tem
tra
ços
e gestos talvez

coisa que in-forma
e
se
vai
até
a
pró
xi
ma
estação de desejos

vidas se
abrem

portas
se
fecham

portas
se abrem...

onde estão
as
vidas?

anagramar

o mar
e cada partícula
que no mar mora

existência dum império
duma cidade-estado
de exército próprio
que se expande
se emancipa
se soma

beligerante e belo

Roma

porque não é fácil
a descoberta

há aqueles que clamam
mas poucos oram
para ter certo
o seu surgir
sem se fugir

e trombetas, soam
o que há de sujo
ratos, roam
impureza corroída
e tudo mais seguro
ar e sopro puro

coberto não estava
nem existia
nem pensava
mas de semente
se fez algo
e de repente
se fez ramo
adiante
se fez flor

aroma aroma aroma

tempo restante
fruto

amora amora amora

amor há amor há amor

há amor há

amor

espiral

não quero mais
pensamento comum ao tempo
ato com hora marcada
perfeita convenção armada de cinza
réplica coerente
palavra sem repente

a eficácia de justificar
o que não foi vivido
é a mesma de se apertar
um parafuso
de fenda espanada

quero dar vazão
ao que sente a pele

onde está
o chocolate com café?
a escondida vontade de furar a fila?

e por onde anda
o dedo no recheio do bolo?

 a partir de agora quero
astúcia desarmada de réplica
repente da palavra
tempo incomum ao devaneio do pensar

quero
fato

sábado, 12 de abril de 2008

paz clandestina

ar puro
purificado
traço edificado

de vento
voraz
calmaria ambulante

para
lugar outro
algum
se destina

saída tangente
retorno
obrigatório ar
de fuga

de volta
a circular
circular

circular

moinho
secular

Luz adâmica

Certa vez, saí de uma caverna meio escura.
Em sentido contrário ao calor.
Senti frio.

Chorei.

Fui ofuscado por uma luz deveras artificial.
Fui banhado por águas menos puras das que até então estava imerso.

De curvo, fiquei mais ereto.
De amorfo, fui ganhando contornos definidos.
Muitos toques.
Muitas vozes.
Muitos sorrisos.
Muito pano.

Cresci, de verdade, como pessoa depois disso.
Me desenvolvi.
De objeto, virei independente.
Dono dos próprios ouvidos.
Da própria boca.
Dono do próprio nariz.

Co-dono da casa própria.

Co-proprietário do próprio carro.

Nada mais me ofusca.
Nem Brasília.

Nem de time adversário, o gol.

Ando com as pernas minhas.
Sem olhar para trás.
Porque já me livrei das trevas de onde vim.
Já me livrei das amarras.

Já tracei o meu fim da linha.
E o fiz com muita alegoria.
E concluí, fechada, minha filosofia.

Isso aqui.
Descoberto.
Desmundo.
Nu.
É verossimilhança.

E só.

terça-feira, 4 de março de 2008

Espontânea mente

É alguma coisa perdida
no fundo do infinito profundo
alguma coisa no seu estado primário
num puro estilo primeiro
na esquecida linha escondida
por detrás de onde não se vê
nos esconderijos de onde não se sente

Choro de criança antes do entardecer
som pesado de leve brisa

É alguma coisa lá, na saída
tal coisa cá, sem pseudo-vida
na vida de quem está no meio
toque de mão de quem veio
pele áspera que se alisa

Alguma coisa
nas pirâmides faraônicas desérticas
algo de sujo entre a limpeza ética
entre a destreza eclética da sapiência

O que não está à vista, é a prazo
qualidade de fumaça de incenso
é fundo, longe do raso
fato para além do próprio caso
menina atrás do muro
atrás de paredes inteiras
do bate-cara de esconde-esconde

Está na imprudente prudência da ciência
na plataforma ao embarcar de madrugada
na forma, sem forma, na essência
no essencial platônico da matéria
comicidade de pessoa séria
socrática supremacia aristotélica

É alguma coisa, sei que é
logo ali, depois do cheiro de pipoca
no limiar entre o passo e o poço
na internidade do não-poder
existe sempre e sempre existe
à frente de onde não se anda

Alguma fraternidade com verdade pronta
alguma coisa
coisa que se faz
coisa, algo, uma, coisa
saudade visível
indivisível sonho anti-semiótico

Força da chuva fina
alguma coisa

Coisa que chama, implora
e na voz e na lágrima
mesma coisa pede passagem
mas, mais uma vez, chama

E, num susto quase racional,
eu, já pálido, respondo:

- Vou não, porque é coisa
e está escondida, sem vista,
sem espaço para visita

Vôo não.

Boa viagem.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Manifesto anti-serista

Manifesto do corpo e da mente anti-seristas desse mundo

Ao padre ortodoxo, à prostituta profissional, ao sociólogo que nunca foi office-boy, ao mendigo que nunca sonhou em ser mendigo de verdade, ao espectador das peças de Gerald Thomas, ao crítico literário de Leminski, aos advogados sindicalistas, aos leitores dos livros de Roberto Justus, aos empresários militantes por uma economia solidária, aos diretores do fã clube de Kubric destino, pois, este manifesto.

Ao me deparar com esse mundo tal ele se declara ser e tal ele acaba se impondo, resta a mim, anti-serista, me colocar, de forma séria, em meu devido lugar.

Caetano está de Chico.

Não suporto mais tanta coisa sendo levada a sério. Não quero mais achar que esse mundo platônico, idealizado, é realidade morta.

Marx talvez ainda se salve, mas nada se compara à genialidade de Freud.

Viva a Tom Zé. Viva à Tela Class. Viva à TV Pirata. Viva à Calabresa e ao Bento. Viva ao Furfles e ao Adnet. Viva a José Mojica. Viva à Sabrina Sato. Viva a Sílvio quando de seus acompanhamentos a quem canta algo no Qual é a música?

Skylab. Antunes. Scliar. Ziraldo. Meus aliados, mas não no fronte. Disfarçam serem anti-seristas. No entanto levam a sério demais o que fazem.

E como ser tucano é o extremo, ser petista é o perigo. Talvez Enéas tenha sido meu ilustre monge. Mas aí é ser anti-serista de alto risco. Melhor ficar suplicyando meus princípios. Este sim, um de meus maiores mestres!

Nada sério demais, por favor. Entendam!

Você ainda acha que uma reunião de Centro Acadêmico vai, de fato, trazer importantes diretrizes à liberdade da nação palestina?

Darwin, um ícone respeitável, mas carta fora do baralho. Copérnico seria perfeito, mas influenciou demais a humanidade.

Cristo talvez esteja mais ao meu lado do que imaginei!

Jânio Quadros, colocaria na berlinda. Afinal, nada mais representativo ao meu movimento do que Dom João VI e Dom Pedro I.

Lenine, Marisa, Carlinhos, Montenegro, Teixeira. Vandré. Sosa e Rodriguez. Guimarães. Graciliano. Perdão. Perdão levo-seristas de respeito. Mas, no peito, há gargalhadas de Elis, há Manual do Blefador, há cachacis de Mussum e há piadas insanas do Batman.

Há a chave: intocável Chaves!

Ah Renato, perdão. Jamais teria o direito de insultá-lo. Entretanto a estupidez humana é coisa muito séria. Dizer sobre isso é coisa muito séria. E você está fora do meu time. Perdão rapaz, perdão!

Cazuza também não entra. Onde já se viu, cantarolar Cartola com sua mãe? Portas fechadas, meu caro. Anti-serista nem coelho tira de sua cartola.

Mas, Cartola, junte-se a mim. Pagodinho. Benito. Isso é bonito. Aliás, bonito já é juízo de valor, oras. Venham e pronto. E venham. Vocês nunca se levaram a sério mesmo!

Falcão, Reginaldo, Waldick, Odair José. Sim a Garincha, não a Pelé.

Toca Raul!

Ser anti-serista não é moda, é necessidade!

O mundo é do humano. A cultura é do humano. As intervenções vêm da cultura. Ambientalismo, salve-se. Meu ambiente é anti-serista. Duro é suportar ecochatos.

Nada. Nada a sério. Nada, aliás, levado muito a sério. Nada axiomático. Nada sem definição. Nada pela metade. Nada com meta. Nada com objetivo. Nada sem sentido. O sentido está em não ser sério. Mais que isso: o sentido é não se levar a sério.

O pecado não é levar a sério a idéia ou a causa. O que se faz daninho é o “levar-se a sério”.

Sou guerrilheiro de uma FARC, todavia espirro aguinha na orelha do companheiro ao lado.

O segredo do anti-serismo é não existir segredo.

E-s-p-o-n-t-a-n-e-i-d-a-d-e.

Fila por Tequila. Nada chegará próximo a nós, enfim, cristalizadas essências.

Dê um abraço na senhora que te xinga no ônibus. Dê um abraço nela. Rápido. Antes que eu leve isso a sério demais.

Bueno. Nada bueno. Bem amigos, Silvio Luiz é meu rei!

Na há dúvidas de que, para existir anti-serismo, precisamos estar sempre ao lado do levo-serismo. Anti-serismo não existe por si. E mudemos de assunto, por favor!

Eu não quero. Não quero reconhecer. Não me faça isso... tudo bem... Jovem Guarda, a sua brasa, mora, queimou a Tropicália, que não chegou a ser uma Bossa, mas se levou a sério... e que a festa anti-serista seja de arromba! Mais anti-serista que isso, impossível.

Erasmo é muito mais nosso centroavante do que Roberto. Este não passaria de um reserva esquecido no banco pelo Joel.

Grande Joel. Ricardo Rocha. Vampeta. Brum.

Que maravilhas, Túlio e Dadá!

Dadaísmo e surrealismo. Seriam minhas vanguardas. Seriam. Se não levassem a sério demais seus anti-serismos. Aliás, se não se levassem a sério demais como anti-seristas.

O ideal é descobrir, incessantemente, se quem Castr(ô) Alves foi, de fato, o Machado de Assis.

Sou anti-serista. E se isso me trouxer alguma felicidade, retire tudo o que eu disse nesse manifesto. Felicidade já é coisa séria demais. Não pensar sobre, mas apenas pensar sobre. É isso. Pronto.

Pare Rousseau! Emílio já está aposentado e com três bisnetos! Nem ele quer saber mais como deve ser educado.

Até Marte já ficou Plutão com tanta seriedade dada à sua superfície.

O homem saiu da caverna. Mas quando se deparou com a luz, já assinou o atestado levo-serista, entregou à recepcionista e levou uma cópia para casa.

A informação em demasia é o principal energético levo-serista. Fugir do excesso desnecessário!!! Ah, isso é coisa séria.

Zé Dumont. O homem que jamais virará suco.

Tiririca. Como tu és império!

Aqui paro. E chega de me levar a sério.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

vereda(s)

me diga o motivo de tua angústia

que te direi o não-motivo da minha,

o desmotivo de ser-estar

café com chocolate

abacate com limão


não entendo o porquê de tua luta

mas vá, me diga o motivo de ela existir

que te digo o imotivo de minha abstenção


continue, prossiga

me fale o que não te faz rir

porque quero te dizer

como minha gargalhada

surge, assim,

no meio do nada,

sem motivo


poço de lamentos

solte aí teus chorares

destrave as amarras

jogue na atmosfera

esses tomates secos

esse azedo nó do peito


descarregue essa encomenda

mas faça logo


coragem,

ser sem piedade de si

vamos já com isso


quero rir de tua desgraça

me esbaldar em tua tristeza

que só me alimenta de prazer


desenlace essa amargura

que farei dela minha fortaleza

minha overdose de sossego


quero essa lágrima

saindo rapidinho

esse soluço bem forte

bem expansivo


e me deleito de tanta euforia

e me devoro de êxtase

e ascendo meu caminho

para um nirvana de risos


e de tanto rir

que minha saliva

doce

transborde,

e encontre esse sal vivo

a derreter tu’alma


rio e mar

do púrpuro nada que é

viver

Uma dose, Seu Judas

- Um dedinho de branquela, Seu Judas, por favor!

Todos os dias era assim. Um rapaz franzino, aparentando ter uns vinte e poucos anos, entrava no bar de Seu Judas e pedia de maneira bastante educada uma dose de cachaça.

Judas Pereira era homem de palavra, cabra macho dos cafundós do Ceará. Nem lembrava mais há quanto tempo já estava em São Paulo:

- Eita, cabra safado, quando você quiser, me avisa que eu mostro a minha peixeira!

A alguns metros do balcão, ainda dentro do bar, Irineu acompanhava a cena com um certo estranhamento. Costumava pensar em voz bem baixa o que lhe parecia daquilo.

- Mas que ousadia. Esse Judas aí não tem o mínimo de respeito com o coitado do freguês!

E assim era todo santo dia. O rapaz vinha de maneira singela, quase que se subordinando ao dono do bar, e pedia sua cachacinha. E Seu Judas, com voz severa que só o diabo, servia o rapaz, mas repetia a mesma frase, com direito a reiteração:

- E você sabe que eu mostro mesmo, hein cabra!?!

E o rapaz dos cambitos finos dava um sorriso sem graça e tornava a abaixar a cabeça, com um olhar oblíquo para o que poderia ser o pé do balcão.

Era sempre o horário que Irineu estava por lá. Assembléia dos homens da vila após o expediente de trabalho. Para ele, apenas vinte minutos para dar alguns goles num guaraná antes de ir para casa tomar conta dos filhos.

Algumas semanas se passaram e Irineu não conseguia entender a petulância do dono do boteco. Como podia um rapaz tão comportado, tão educado, se submeter a tanta ignorância? Um espírito de fúria contamina a alma do observador Irineu em doses homeopáticas.

Eis que me chega o magricela novamente:

- Um pouquinho de cachaça Seu Judas, por favor!

Irineu nem esperou a terceira palavra da habitual resposta de Judas se completar para intervir e questioná-lo sobre sua conduta.

Seu Judas, repentinamente, aparentando não entender o que estava de fato se passando, perguntou o que ele queria com aquelas palavras ofensivas.

- E ainda tem a pachorra de me perguntar um troço desses? Não vê o que faz com esse pobre rapaz toda vez que ele pede uma simples dose de pinga? O senhor não tem vergonha na cara de ficar humilhando os outros não? Tu vai é ver o que merece!

Num gesto inesperado, Irineu, dominado por uma ira sem limites, pulou para dentro do balcão, pegou a peixeira que tanto era ostentada por Seu Judas e mandou-lhe, sem chances de defesa, duas facadas em sua barriga. Em alguns segundos, o dono do bar não tinha mais pulso.

Ainda atordoado pela adrenalina do feito, Irineu aproximou-se do rapaz magro das cachaças, olhando o corpo de Judas. Uma voz embargada, atrás, parecia não acreditar no que via:

- Meu Deus, que vida é essa?

- Que vida é essa? Isso é a justiça meu rapaz. Você não via o que ele fazia contigo? Ameaçava te matar sempre que vinha aqui, dizendo que mostraria essa peixeira sempre que você quisesse.

Num gesto cinematográfico, o rapaz deixa escapar de seus olhos uma lágrima, agacha-se ao lado do homem ensangüentado no chão, e murmura:

- Era sempre a brincadeira que padrinho fazia comigo se eu quisesse beber a minha cachacinha com limão.

Só de lembrar

Ai que vontade que me dá

só de lembrar

só de lembrar


tocar teu umbigo

olhar teu joelho

beijar teu tornozelo


acariciar o peito do teu pé


assim que é

assim que é


meu pescoço em tua canela

barriga e cotovelo


Ai que vontade

que vontade que me dá


pêlos da minha perna

em tua nuca

minhas costas roçando

alguns fios de teus cabelos


é um arrepio

é um arrepio


Só de lembrar

ai que vontade que me dá


ponta do teu dedo

a coçar

a coçar meu punho


língua e calcanhar

ombro e coxas

a se tocar

assim tocar


Ai que vontade que me dá

só de lembrar

só de lembrar

razão do entre

sabe nada,

quiçá


vida, há

há de ir, há

se há, vá

é caminho

espelho do dito

infinito


vós pensais,

sois

sol a sol

brisa híbrida

de ser


sim, fui

não, é

como dois

e dois,

disse


de nada,

quanto

rumo

ao centro

ao canto


de quina

esquina

ponteiros

salto do tempo


tempo

para quem salta


vento

para quem fica


nada

para quem ouve


sementes jogadas

para quem rega


Cronos à procura de Hera...


e se tempo

não for tempo?


procura insensata

do pensamento.


um ponto

no ar

se propaga


nada e tempo:

tudo


mais tempo,

fico mudo.

pen'alma

ó

leve

leve pena

lave a lebre e

pequen'alma livre

leve pena para alma

pena que valha a pena

leve e lavre com a alma

como alma calma

leve e plena se

acena sob

pena

leve

é

Matina sabatina

Sábado.
Sol da manhã, na manha do próprio eu

Olhos ardentes.

Água. Creme (para dentes?). Escova e água.

Biscoito. Café. Fervido café.
Fervido café?
Copo. Puro café. Café e copo.

Fervido café.

Gole, na fé: fervido café.

Gosto. Não gosto.
Gosto. Não-gosto.

Fervido café. Fervido café...

Leite!

Branco leite.
Gelado leite.
Sagrado leite.

Café e leite.

Copo. Café. Leite.

Sem fé: deleite!

Fato

O fato é que de feto

já se fez cria

de fato já se fez dia

o dia que se fez ato


Olfato que se fez parte

o fato é que se fez arte

de trato que se diz tato


No alto

o fato é raro


é ralo?


[Lá sei]

lacei

lá assado


O que sobra

é faísca


Embrião de vida

trombetas de trompas

fadiga

Uni versos

Segunda

é o dia

é a marcha

é a chance


Primeiro

é o atleta

é o dever

é o pagar


Último

é o amor

é o amor

é o amor


Abstrata ação


Prefiro o não-limite

não à certeza

sim ao palpite


Que ninguém grite

que ninguém grite

que ninguém grite


Transparecer

expandir

viajar


Entretanto,

entre tantos,


Pés no chão

pés no chão

pés no chão

Pense bem no que te digo

Não gosto de conselhos.

Não mesmo, é verdade, acredite.

Não faça isso. Não dê conselhos.

Jamais daria sequer um conselho.

Não ache que dando conselhos você ajuda a alguém.

Dar conselho é enganar a si mesmo.

É jogar no lixo tudo o que não prestou na tua vida.

E fazer uma reciclagem aos ouvidos do aconselhado.

Não faça isso. Conselho para quê?

Não diga a ninguém aquilo que, no fundo, você gostaria de ter feito.

Mas não foi capaz.

E quer saber mais? Não será. Nunca será.

Coma de boca aberta.

Fale palavrão em momentos de crise.

E fale palavrão em momentos felizes também.

Grite. Mas sem perder de vista que precisará falar depois.

Tome um banho de chuva. Apenas um. Garanto que é bom.

Vá beber com tua turma em vez de fazer trabalho da faculdade.

Faça, meu amigo, o que te der vontade.

Mas te falo com muita franqueza: não dê conselho.

Isso é coisa de quem não tem o que dizer.

Eu sei. Sempre tem aquele momento que nossa vontade de ajudar é despertada.

Mas isso é cultural. É para alívio de consciência.

Não aconselhe ninguém. Deixe que vivam e tirem suas conclusões.

Sejamos empíricos. Sejamos vivedores de nossas ilusões.

Seja amigo, seja companheiro.

Mas não dê conselho.

E aí, quando tiveres prestes a aconselhar

E perceberes que já o está fazendo.

Desista!

Interrompa tua idéia. Mude de assunto. Diga à pessoa que viva o momento.

Porque somente ela poderá saber o que é bom e o que é ruim para si.

Por isso, pense bem no que te digo.

Pense que o mundo somente tem sentido se vivido.

Não faça isso. Não dê conselhos.

Não faça da tua ideia a ideia que nem foi despertada pelo outro.

Não é aconselhável.

Não gosto de conselhos.

O conselho, caro amigo, é coisa descartável.

Sopro

o
r
p
o
S

vai onde vento sopra


só pra vento vai



onde sopra vento onde


sopra vento só pra onde



vento pra onde só pra



você vento onde vai

eu vou



e vôo

e vôo


e vôo



e vou



e vou

e...

O comum do senso

- Ah, rapaz, isso aí é tudo máfia. Você acha que isso aí tudo já não está esquematizado entre eles? É tudo máfia, rapaz.

- Não é bem assim. Existe uma forma de se resolver a injustiça no mundo: se deve começar pelas pessoas. Cada um tem que fazer a sua parte. Se cada um fizesse a sua parte, o mundo, com certeza, seria bem melhor.

- Mas olha só o governo por exemplo. Existe um buraco aqui na rua, já tem uns dois meses. É um desperdício. Olha o tanto de água que sai. Liguei pra companhia de água umas três vezes já. Mas cadê que eles vêm? Essa prefeitura é uma porcaria!

- Agora, pega aí aqueles países da Europa. Quero ver se em cidades de lá isso acontece. É só aqui, rapaz, é só aqui que tem essa roubalheira aí, ó. Ninguém liga pra nada.

- Não tenha dúvidas. Olha, sinceramente, acho que tudo isso aí é coisa que já está anunciada, sabe. Se você pega lá nas escritura, já tá tudo lá. Tudo lá. Isso aí é o fim do mundo, rapaz. Deus já disse que teremos falsos profetas disfarçados de profetas verdadeiros e tal. Se você pega e lê, tá tudo lá.

- É tudo obra do Inimigo. Você acredita que meu filho, agora, não sai daquela porcaria daquele vídeo-game? É um tal de futebol, de corrida. O moleque joga de tudo lá. Comer que é bom quando a mãe chama... nada!

- Isso aí é porque não passou pelo o que nós passamos. Queria ver essa molecada de hoje na roça. Dá uma enxada pra eles. Não vão aguentar nem dez minutos debaixo do sol.

- Ê, rapaz, essa molecada de hoje merece é um rei. Quando eu era moleque, meu pai tinha um chico-doce. Às vezes, ele nem precisava bater. Era só olhar pra mim ou pra um dos meus irmãos. A gente já sabia que o coro ia comer só por causa da olhada dele.

- Ah, rapaz. Uma vez meu pai me deu um rei de espada-de-são-jorge, porque me pegou fumando cigarro de palha escondido. Eu devia ter uns onze anos, mais ou menos. Tá pensando o quê? A coisa era dura, rapaz.

- E minha mãe me deixou todo queimado de cigarro, porque me pegou atrás da moita com uma mocinha lá da roça de João de Sá, um compadre do meu pai que tinha uma fazenda, umas terras lá do lado da gente. Era sobrinha de Seu João. Agora, essa molecada de hoje é tudo mole, rapaz. No meu tempo, eu já teria pêgo essas menininhas tudo aqui da rua.

- Olha a neta de Dona Zuca, ali, ó.

- Qual? A de Toninha ou a de Marina?

- A de Toninha, rapaz. Diz que já embuchou de novo. Menina tão novinha, rapaz, já safada desse jeito. Deve ter uns dezenove anos, só. Já está emprenhada do segundo filho.

- Mas, rapaz, você viu a novela ontem? A televisão não tem mais programa que preste não. Pouca vergonha. Baixaria, rapaz. Mulher pelada, mostrando tudo. Umas menininhas novas, rapaz, com os peitos de fora.

- Essas atrizes aí são tudo cacho de diretor, rapaz. Você não acha que esses cara não saem com essas meninas aí e, em troca, colocam elas nas novelas? Mas eu tô dizendo. Claro que saem.

- Sabe o que eu estava dizendo esses dias no Bar do Zelão? Rapaz, você lembra como era na época da ditadura? Não tinha essa pouca vergonha que tem hoje não, rapaz. Era tudo controlado. Sem essas safadezas aí, ó. Tinha era que voltar logo aquele AI-5 lá que o Ademar de Barros – não foi? – baixou lá. Acabar com essa safadeza toda aí.

- Foi nada. Acho que foi o Figueiredo, não foi? É, acho que foi ele sim. Ah, mas naquele tempo era outra história. Não vê esses sem-terra aí, rapaz. Tem é que descer o porrete mesmo. Tudo bandido. Agora, o governo fica lá. Parece que apoia. Vou te dizer, viu.

- Quando eu vim pra cá, isso aqui era tudo mato. Tudo mato, rapaz. Ali, atrás do colégio do Pedrinho, ali passava um corguinho e tinha um campinho, com um gramadinho bom. Ih, rapaz, já joguei tanta bola ali. Minha mãe vinha me chamar pra comer e cadê que eu ia? Tomava cada rei. Mas hoje isso aqui virou uma cidade, né rapaz?

- É verdade. Mal cheguei aqui, já engravidei a Zuleica. Eu tinha dezesseis e ela quinze. O pai dela disse que era pra casar. Homem tem que casar, fazer o quê?

- É, rapaz. Eu casei com dezoito. E Ana já tava grávida também quando casei.

- Hoje esses troço aí, tudo grande. Esses bichos parecem que esticam. Acho que é essa comida de hoje em dia. Não é possível.

- Ô, Zé, você já pagou o IPTU, rapaz?

- Não paguei e não vou pagar. Ficar dando dinheiro pro governo, rapaz. Esse governador aí não merece nem um centavo da gente.

- Eu tenho firma aberta aqui na oficina, mas dou um jeitinho de não pagar tudo que tem de imposto, né. É uma facada, rapaz. Não dá pra dar trela pro governo não.

- Olha, teve uma turma que passou aqui ontem. Fizeram aí um convite pra participar da reunião de um movimento de discussão sobre os buracos nas ruas do bairro, porque a tal companhia de água, acho, não tá dando conta de arrumar tudo não. Vai ser lá na paróquia do Padre Joaquim.

- E você acha que eu tenho cara de participar dessas reuniões aí, rapaz? Isso é tudo gente que tem ligação com vereador, com deputado. Esses movimento aí é tudo a mesma coisa. Você discute, discute e não resolve nada. Que horas vai ser?

- Acho que vai ser às oito e meia.

- Do dia ou da noite?

- Da noite.

- Ah, e eu vou perder a novela pra ir à igreja? Ainda mais desse padre. Safado, rapaz. Esses dias vi ele defendendo essas pessoas dos sem-teto, sem-terra, uma coisa assim. Deve ser daqueles que defende bandido e fica com essa história de direitos humanos pra bandido. Por que é assim, né. Na hora que o trabalhador morre, não vem ninguém dos direitos humanos pra defender. Agora, quando bandido morre...

- Mas tem que morrer mesmo, rapaz. É tudo sangue ruim. Tem que morrer! É, rapaz, acho que você tem razão. Sempre desconfiei desse povo. Vou também não. Isso aí é tudo máfia.

- E se não é, rapaz. Deixa eu ir ver se a dona da pensão já fez o almoço.

- É, eu também vou lá.

- Ah, e aí, você vai comprar aquele celular roubado mesmo?

rota

num roda-mundo
que cilada
luz apagou
luz apagada
e tão bem quisto
é o fim da estrada
mas essa estrada
não é mundo

eu te ouvi
por um segundo
em meio a mim
e alguns papéis
em meio ao meio
que é inteiro
em meio à esquina
vagabundo

esse olhar
tão moribundo
profundidade
de prazer
queria tanto
ser mais forte
queria tento
esse querer

além o porém
existe
é quase vida
quase sorte
também um pouquinho
de morte
alguma morte
quase triste

num roda-mundo
que parada
o mundo gere
diz, insere
e tão vermelha
é a chegada
mas a chegada
não é mundo

eu passeei
sobre o teu tempo
no chão batido
da calçada
eu percorri
toda essa estrada
mas essa estrada
não é mundo

eu me perdi,
olho profundo,
por te perder
por um segundo

gira mundo
gira-mundo
ponta de estrada
que insiste
e essa vida
que resiste
àlguma sorte
quase triste

queragem

ainda não sei ao certo
o que quero

na verdade,
tenho pressa nenhuma de saber

no fundo,
prefiro ficar a vida inteira sem saber

porque quero nada

ou, talvez, queira,
mas não saiba o que quero

não é possível que eu saiba!

se soubesse,
saberia dizer com clareza

no entanto
sei dizer nada

então não existe nada
que eu queira

e se... e se existir?

será que o que quero
existe
mas, por vontade própria,
fugiu de mim?

se assim for, então o que eu quero
não me quer
ou, ainda, o que quero
mal me quer

e se... e se eu fujo
do que quero?
pode ser também,
não é?

o que quero lá está
à minha espera de querê-lo
e diante disso
eu fujo

agora,
se eu fujo,
é porque quero fugir

então, talvez eu tenha
achado explicação.

eu quero
fugir do que quero

que coisa estranha
esse querer.

não, não é assim
se eu fujo
é porque não quero
ou, talvez, eu fuja
porque não sei
se o que quero me quer
fujo,
talvez porque o que quero me quer
talvez,
porque quero o que quero

quer saber a verdade?
acho que não quero querer nada

mas se isso é um
não querer
quero não querer nada
entretanto, se nada quero
é sinal de que
não quero
mesmo que para isso
algo queira

a não ser que...
você também não queira
porque aí, não querendo,
eu também não quererei
assim, não quereremos,
mas já querendo
e podemos descobrir que
querer ou não querer
tem vontade própria
do que é quisto

quero terminar tudo isto
mas você não quer
sabe por que não quer?
porque eu não quero

não quero parar de mostrar
aquilo que não quero

aliás, mostrar que
nada quero

você quer o que, afinal?
que eu queira algo no final?

mas, assim,
todo mundo quer
o mundo inteiro quer
e não quero
o que o mundo quer
nem o mundo eu quero

será que o mundo me quer?

só sei que quero o não quisto

quero saber se existo

quero saber o motivo do querer
não ser sério
mesmo que o sério
eu não queira

não quero

nem centro
nem vão
nem chão

quero a rabeira

não quero a ponta

quero a beira

é
quero saber
o que você quer

porque se você me disser
teu querer
ele vai querer
saber o meu

aí teu querer
e meu querer
vão querer não querer

não quero estar por perto
quando isso acontecer

Mão dupla

Cadê a porcaria da chave? Ah, tá aqui.
Ah, mas... deixa pra lá. Depois carrego essa droga desse celular. Não pára de apitar essa merda. Chegando lá eu carrego. Isso se a Rosa deixar usar a tomada dela, né? Porque a tomada é dela, não é da firma. Estou ficando mole mesmo!
Tranquei porta. Portão. Preciso tirar essa papelada dessa carteira. Tudo lixo isso aqui. Faço isso assim que chegar lá.
Padaria aberta. E essa cara de sono desse moleque? Parece um filhote de cruz-credo.
Por, que, o, Bigode, foi, perder, três gols no jogo de ontem? Três gols. Diz pra mim, vai. Três gols. Na cara do gol. Só ele e o gol. Mas não entendo essa visão desses caras do time de achar que tenho que tirar o Bigode. É um bom centroavante. E quer saber? Ainda consegue fazer mais gols que o Roberval. Só me arrumam abacaxi, só me arrumam abacaxi. Na hora que ganha, fica todo mundo lá pagando cerveja. Agora que não somos mais líderes... eu vou falar isso na cara do Tonho. Deixa ele pra ver.
E esse café quente? Não tem um café mais frio aí não, meu filho? Zé roela. Como é que meu pai falava mesmo? Oreia seca. Nossa, meu pai. Preciso ligar pro meu pai. Chegando lá eu ligo. Acho que dá tempo sim. É, dá sim. Olha minha língua! Isso fica assim uns dois dias. Mais o dente do siso. Desgraça! Pendura aí, pé enchado. Preciso ir.
Essa calçada. Ficou de ser arrumada semana retrasada. Pedreiro picareta esse do Seu Joaquim, viu. Ô raça, ô raça. Acho que prefiro ter um filho viado do que ter um filho pedreiro.
Nossa, o que que é isso, gente? Essa filha do Bigode está ficando... o que que é isso? Olha o tamanho. Se o pai fizesse gol do mesmo jeito que a filha é bonita, estava tudo tranquilo. Na madrugada vitrola rolando um blues, trocando de biquini sem parar. Sinto por dentro uma coisa bem branda, uma luz. A energia quem manda de todo prazer. Faz tempo que não compro uns CDs. Na verdade agora o lance é Internet, MB3, P3. Sei lá que rosca é essa aí. Vou comprar um computador. Vou ver os preços lá assim que chegar. Vou falar com o molengão do estagiário pra ver pra mim na Internet. Preciso aprender a mexer nesse negócio aí, meu. Cara relaxado. Você é relaxado hein, moleque? Trinta e nove anos nas costas. Ai. Não paguei a conta pra minha mãe. Não paguei? Paguei? Paguei. Ontem. Na hora do almoço. Uma coisa a menos pra dona véia falar. Essa dona véia é uma figura. Encrenca tanto com a Sônia. Dez anos a mais que eu só. Também não é pra tanto. Tá enxuta ainda. Corão. Não vou casar com ela. Mas ela é legal. Gosto dela. Essa dona véia é uma figura.
Que ma, ra, vi, lha. Chuva. Claro, chuva. Por que não chover, não é mesmo? Isso. Vai. Se molha logo. Isso. Esquece o guarda-chuva em casa. Esquece. Preciso é comprar um guarda-chuva. Não tenho guarda-chuva. Se minha mãe souber disso... e meu tênis que não lavei? Nossa, meu tênis.
Ponto cheio. Aquele cara de ontem aí de novo. No mínimo deve estar pensando: olha aí o ameba! Insisto em deixar o Bigode no time. Meu, o Roberval. Deve ter caso com todos esses putos aí. Só pode. Só busão lotado, só busão lotado. Só busão lotado. Seis horas. Seis horas? Era pra eu estar aqui dez minutos antes. Atrasado de novo. Tu é relaxado mesmo, hein moleque?
Não quero conversar com essa mulher. Cara de Dercy Gonçalves. Olha pra isso. Fica me olhando como se me conhecesse. Ih, olha lá. Lá vem. Tô dizendo. Vai falar comigo. Olha lá.
Não!!!
Não, não, não, não. Eu, não, acredito, que, esqueci, a, minha, carteira, em, cima, da, mesa! Não tenho um puto de centavo no bolso. Dez minutos atrasado. A Dercy vem falar comigo. O cara de ontem que sai com o Roberval me olhando. A Dercy não morre. Véia fedorenta. O Bigode me perde três. Três gols. Três gols. Três reais pelo menos. Três reais. Se tivesse três reais já dava um adianto, hein. É, isso aí, três reais. Vale mais que trinta gols do Bigode. Sessenta gols do Bigode. Vale mais do que essa Dercy fofoqueira querendo puxar assunto. Vale mais...
- Ô, minha senhora, bom dia! Tudo bem? A senhora não teria, por gentileza, três reais pra me emprestar? Esqueci minha carteira em casa. Vim apressado pra cá. Sabe como é né...

coando

quando vivi
já era morto
quando nasci
já era vivo
quando morri
já era a morte
uma falta de sorte
quando tive sorte
veio o surto
com o surto
o sorteio
quando fui eu
não fui comigo
quando comigo fui
não fui amigo
quando me falaram
escutei de longe
quando mais distante
brinquei de monge
quando dei por mim
emprestei, imprestável
quando prestei para uns
para outros, reciclável
agora me calo
agora meu calo
agora nem Kahlo
agora, somente a ti, falo
e quem ouve é meu
ralo

Construtivismo do sentido

João, aos cinco anos, reclama de uma dor de dente que havia sentido.

Aos dezesseis, relembra uma paixão infantil que havia sentido.

Aos dezoito, aprende na auto escola que uma via pode ter dois sentidos.

Aos dezenove, no exército: sentido!

Aos vinte e três, fica muito sentido por mais uma relação terminada em sua vida.

Hoje, aos quarenta, João se pergunta, após perder os sentidos, se sua vida, outrora tão dinâmica, ainda tem sentido.

invenção dos contos

quando inventaram o dinheiro
não sabiam que um dia
esse invento só traria
o mal pra humanidade
que por onde ele passasse
os olhares mudariam
e num piscar dos mesmos olhos
acabaria a honestidade

quando inventaram o dinheiro
não sabiam no entanto
que derramaria pranto
por ele fariam guerra
que pra alguns seria nada
pra outros seria santo
diferente em cada canto
que existe nessa Terra

quando inventaram o dinheiro
não sabiam, na verdade,
que poucos teriam muito
e muitos pela metade
que outros muitos nem teriam
e de fome morreriam
ou então se matariam
por haver desigualdade

quando inventaram o dinheiro
não sabiam que sua falta
deixaria tanta gente
com a corda no pescoço
que ontem se acabaria
amanhã não existiria
e que ele faltaria, hoje,
dentro do meu bolso

Carnelábios

Carne,

lábios


Lábio,

pele


Umidade,

pura


Flecha,

fura


Carnes,

choque


Bocas,

duas


Um

toque

A esquina

E segue que segue o norte de uma das ruas. Cansado de tanto cansaço, nem tem tempo de olhar para o lado.

E passa que passa a palmilhar uma calçada já tão velha. Velho pensamento de quem palmilha. Pensamento velho que não deixa olhar mais para nada.

Do outro lado, um homem, deitado numa calçada nova, com uma coberta descobrindo os pés:

- Ei, seu doido. Você é doido de pedra mesmo hein!

Mas pensamento é tão velho que nem frase nova faz pensar que é com ele.

E segue que segue a palmilhar uma calçada tão nova. Pensamento novo repete pensamento velho de outrora.

- Licença, preciso atravessar a rua!

- Pois não.

Pela esquina não é um que atravessa. São muitos com pressa. Muitos porque o tempo interessa mais do que o próprio tempo que passa. O tempo se perde na fumaça. E a fumaça é cinzenta, como o pensamento velho do rapaz novo.

- Bom dia, você sabe como faço para ir para o outro lado da rua?

- Sim, é só atravessá-la.

E passa que passa o norte de uma das ruas. O olhar para baixo. Rapaz novo. Pensamento velho de fumaça cinzenta...